"Portugal está em crise e regressa a habitual rapsódia do desânimo. Todos zurzem os responsáveis e lamentam que "este país" não tem emenda. Ninguém nota os enormes progressos desde anteriores recessões. Pior, as críticas são tão ociosas quanto os criticados. Afinal que aconteceu e como se cura?
A situação tem contorno definido e solução simples. Em 1985, ao entrarmos na Europa, o primeiro-ministro Cavaco Silva falava em desafios, dificuldades e pedia "deixem-nos trabalhar". Ao fim de dez anos de esforços, em 1995, os eleitores quiseram descansar e acreditaram ser possível crescer sem esforço. Realmente a segunda metade da década de 1990 viveu uma prosperidade aparentemente fácil. Muitos avisaram à época que tal só era possível com endividamento.
Esta ilusão é paralela à euforia consumista americana que tantos condenam. A nossa dívida pública externa triplicou de 12% do PIB em 1995 para mais de 45% em 2007. No total do País, a "posição de investimento internacional", indicador da situação financeira global, subiu de uma dívida de 8% do produto em 1996 para 40% em 2000. Agora, ao atingir os 90%, os jornais acordaram.
Como foi possível chegar aqui? Um país pequeno não se endivida sem a sua moeda entrar em colapso. Portugal aprendeu isso em 1977 e 1983, quando chamou o FMI para pôr a casa em ordem. Mas na grande Zona do Euro as dívidas portuguesas deixaram de ter impacto e pudemos acumular sucessivos défices externos. Desde 1998 que o nosso desequilíbrio na balança corrente e capitais está acima dos 4% do PIB. Desde 2005 ultrapassamos os 8%, nível da crise revolucionária de Abril. A moeda única tem muitas vantagens, mas o pior defeito é esta perda do sinal de alarme cambial: endividamo-nos sem custos.
Mas não ficámos indefesos, pois permanecem dois avisos. O primeiro, o Pacto de Estabilidade, por ser político, foi violado sem problemas. Portugal foi o primeiro país europeu a ultrapassar os limites de 2001 a 2007. Existe porém um outro mecanismo para forçar a corrigir o descalabro: o mercado financeiro. Quem está demasiado endividado paga taxas altas ou perde acesso ao crédito.
Infelizmente, na euforia inicial do euro e da bolha especulativa, os mercados não discerniam correctamente entre os países, tratando por igual todos os membros da moeda única. Por isso é excelente a notícia da passada quarta-feira, de descida na classificação de risco (rating) da dívida portuguesa. Finalmente, com a crise financeira mundial, os mercados voltam a cumprir as suas funções de vigilância.
Os próximos anos serão duros, mas vamos entrar no bom caminho, quer queiramos quer não. Portugal será forçado a corrigir a sua situação financeira. Não há desculpas. Bendita crise, se nos der juízo!
Ao começar finalmente a recuperação, os actuais lamentos e críticas são inúteis. Quando faziam falta, não se ouviam. Pior, são também hipócritas porque a culpa do endividamento não é dos políticos, mas de todos. Um indicador simples mostra o problema.
A grave situação externa vem da baixa competitividade de Portugal. Mas, ao contrário do que se diz, o mal não está na produtividade. Desde que entrámos no euro (1999--2007) o produto por trabalhador português cresceu um total de 10,4%, enquanto na média dos Doze crescia 10,9% e a Espanha só 4%. Por que razão ficámos para trás? Porque os salários portugueses aumentaram um total de 7,7% no mesmo período, enquanto a média dos Doze subia só 5,5% e em Espanha caíam 4,5% acumulados. As nossas dificuldades externas e endividamento não vêm de produzirmos pouco, mas de ganharmos de mais para o que produzimos.
O problema não está nos salários dos operários, que na indústria vivem intensa concorrência europeia. São os ordenados dos ministros, funcionários, bancários, professores, médicos e outros. De todos, até dos críticos.
A solução para a crise não vem da qualidade da classe política e outros temas habituais dos lamentos. Passa, em boa medida, por uma expressão que Cavaco Silva usava há 15 anos e nunca se ouviu desde então: moderação salarial."
João César das Neves, Professor universitário, 26 de Janeiro 2009 no DN
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